terça-feira, 18 de janeiro de 2011

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO


Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro de mim e eu fora, e aí te procurava, e eu, sem beleza, precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste.

Tu estavas comigo e eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti aquelas coisas que não seriam, se em ti não fossem. Chamaste, e clamaste, e rompeste a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha cegueira; exalaste o teu perfume , e eu respirei e suspiro por ti; saboreei-te , e tenho fome e sede ; tocaste-me, e inflamei-me no desejo da tua paz.

Quando estiver unido a ti por todo o meu ser, não existirá para mim em parte alguma dor e labor , e viva será a minha. Apesar de a edição adoptada ter optado pela lição flagrasti, traduzimos por ‘exalaste o teu perfume’ e não por ‘incendiaste-me de amor’, dada a sequência dos cinco sentidos: ouvido, vista, cheiro, sabor, tacto.

Agora, porém, porque tu levantas aquele a quem enches de ti, eu sou um peso para mim mesmo, porque de ti não estou cheio. As minhas alegrias, dignas de pranto, litigam com as minhas tristezas, dignas de júbilo, e eu não sei de que lado está a vitória. Ai de mim, Senhor, compadece-te de mim! Ai de mim! Eis que não oculto as minhas feridas: tu és o médico, eu estou doente; tu és misericordioso, eu sou um miserável. Acaso a vida humana sobre a terra não é uma provação? Quem deseja desgraças e dificuldades?

Mandas suportá-las, não amá-las. Ninguém ama o que suporta, embora ame suportar. Ainda que se alegre em suportar, prefere, todavia, que nada haja que suportar. Desejo a prosperidade na adversidade, e receio a adversidade na prosperidade. Que meio termo existe entre elas, onde a vida humana não seja uma provação? Ai das prosperidades mundanas, uma e outra vez, por causa do receio da adversidade e por causa da corrupção da alegria! Ai das adversidades mundanas, uma, duas e três vezes, por causa do desejo de prosperidade e, porque é dura a própria adversidade, oxalá não quebrante a capacidade de suportar! Acaso a vida humana sobre a terra não é uma provação sem nenhuma pausa?

E toda a minha esperança não está senão na imensidão da tua misericórdia. Concede-me o que ordenas e ordena-me o que queres. Exiges de nós a continência. Diz alguém: E sabendo eu que ninguém pode ser continente se Deus não lho conceder, era já fruto da sabedoria o saber de quem era este dom. Efectivamente, pela continência saímos da dispersão e somos reconduzidos à unidade, da qual nos dissipámos em muitas coisas. Na verdade, ama-te menos aquele que, ao mesmo tempo que a ti, ama alguma coisa, que não ama por causa de ti. Ó amor que ardes continuamente e nunca te extingues, caridade, ó meu Deus, inflama-me! Ordenas a continência: concede-me o que ordenas e ordena-me o que queres.

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